Mexendo em algumas das várias caixas empilhadas no meu armário, algumas intocadas desde a primeira das várias mudanças de casa do último ano, me deparei com uma lista de “100 coisas que quero fazer antes de morrer“. Acredito que é só uma das várias listas de resoluções que elaborei minuciosamente desde meus primórdios da capacidade de planejar. Também acredito que a elaboração de listas nesse estilo (geralmente com títulos um tanto quanto mais criativos) é unanimidade entre os meus companheiros de geração.
Minhas listas são particularmente criativas, com itens que vão desde viagens, até premiações, esportes radicais e beijar uma lhama. E todas as minhas dezenas de listas têm um ponto em comum: eu não realizei nenhum, ou quase nenhum, dos meus planos.
Pulando a parte em que falo que voltarei a planejar, e irei de fato cumprir a próxima lista (e eu irei de fato cumprir a próxima lista), vou partir para uma análise um tanto quanto maniqueísta da situação refletida por minhas singelas resoluções: a frustração da geração anos 90 (e todas as outras).
A fundamentação da sociedade contemporânea de classe média é quase totalmente baseada em força produtiva. E geralmente essa força produtiva é majoritariamente intelectual. Portanto, somos treinados, desde pequenos, para exercitar a capacidade de concentração e de absorção de dados. Logo, já nos bancos escolares somos ensinados a manter-se em silêncio mesmo que em grupo, a ter instrução dada por um superior hierárquico que direciona as áreas de trabalho conforme seu interesse, a memorizar e reproduzir. E assim somos divididos em grupos, dando a falsa sensação de escolha. Alguns descobrem aptidão para cálculos, outros para produção artística, e assim por diante.
Assim, treinados e já prontos para a divisão, praticamos o ato de “escolha”. E “escolhemos” um curso universitário, com diretrizes já pré definidas, em que nos encaixamos, ou deveríamos nos encaixar.
Nossa visão de mundo foi cuidadosamente lapidada durante esses anos nos bancos escolares, assim temos contato com diversas culturas (por meio de livros, claro). A carência de informação sobre as diferentes visões do mesmo mundo fazem com que a nossa visão de sociedade e bem comum seja drasticamente limitada. O egoísmo é assim, semeado, uma vez que não somos capazes de entender ninguém a não ser, com alguma sorte, nós mesmos.
Ainda na infância e adolescência passamos por um processo de massificação de desejos, assim por coincidência todos, na mesma faixa etária, desejam desesperadamente o brinquedo x, ou a marca de roupas y, sob pena de ter sua qualidade de vida terrivelmente depreciada.
Após esses anos de formação intelectual e social interessantíssima, vamos fazer uma maravilhosa viagem: o mercado de trabalho. E com sorte essa será uma viagem curta, para que você possa atender logo as expectativas que todo o universo tem sobre você. Assim, você logo vai poder comprar uma casa (parcelada em 25 anos, com juros maravilhosos) e um caro do ano (melhor que o do vizinho, assim se espera). Dessa forma, e bem colocado na vida, talvez você possa usufruir de maravilhosas férias de 15 dias no ano, e, com seu casamento heterossexual, e seus filhos muito bem educados no sistema em que você mesmo passou, divertir-se à beça na viagem que parcelou no seu cartão de crédito.
Posso ter exagerado um pouco, ou resumido demais, mas o ponto aonde quero chegar são as listas. Ah, as listas de desejos… Aonde nossas maiores excentricidades afloram, ao menos quando é uma lista verdadeiramente honesta. O que quero dizer é: se o que você escreve na sua lista de desejos é tudo aquilo que falei acima, o modo de vida tradicional, tudo bem, então você está no caminho correto.
O fato é que a elaboração de listas de coisas que você gostaria de fazer, mesmo que nunca tenha sido colocada no papel, mesmo que não sejam 100 coisas, mesmo que sejam só as resoluções de ano novo, ao serem díspares com os elementos do modelo social tradicional, são um reflexo da insatisfação com este modelo. Ou com as limitações trazidas por este.
Podem ser as limitações de tempo, de liberdade, as limitações pessoais ou as limitações da sociedade. As listas são um grito do subconsciente, pedindo por satisfação.
Assim, se a sua lista de 100 coisas para fazer antes de morrer tem itens que você não conseguirá realizar no modelo social tradicional, talvez seja hora de colocar a mão na consciência. E não falo de mudar seus desejos, porque quando você tiver 70 anos de idade, você ainda vai querer ter realizado essa lista. Falo de rever sua forma de viver. Trágico, não? Então peço licença para ser ainda mais trágica: o único fato inegável na vida é que vamos morrer. O resto é totalmente mutável, embora não totalmente sob nosso controle.
E o fato é que infelizmente, não é muito provável que você vá realizar todos os 100 desejos. Talvez porque há a limitação financeira, porque alguns desejos são longos, ou porque alguns dos seus desejos simplesmente estão acima da possibilidade da realização, mas ao final talvez hajam algumas coisas sem cumprir. Mas aí é que se encaixa minha argumentação: quantos desejos você quer sem dar o “ok” de cumprido: 99, ou 9?
Acredito que a capacidade e a necessidade de ter sonhos é comum à todos. Afinal, sonhar é o que traz motivação, o que faz com que você tenha forças para suportar o que não é agradável, porque se você ainda não desistiu de seus desejos, bom, você não deixou o sistema de devorar.
Então aí vai o desafio: seja criativo, honesto e não tenha vergonha de ser excêntrico. Pegue papel, caneta e descubra o que você vai fazer para ser feliz.
Quando uma criatura humana desperta para um grande sonho e sobre ele lança toda a força de sua alma, todo o universo conspira a seu favor. (Johann Goethe)